A invisibilidade jurídica do que nos envenena
Tenho refletido, nos últimos anos, sobre uma contradição perturbadora: vivemos sob a égide de um dos códigos de defesa do consumidor mais avançados do mundo, e ainda assim permanecemos expostos, diariamente, a centenas de substâncias químicas cujos efeitos sobre nossa saúde permanecem envolvidos em silêncio normativo e opacidade informacional. O Estado — guardião constitucional da saúde pública — mantém-se surpreendentemente omisso quanto à transparência obrigatória sobre estas substâncias.
Esta não é uma falha acidental. É o resultado de escolhas legislativas, interpretações judiciais conservadoras e, permita-me dizer com a franqueza que o tema exige, de uma cultura jurídica que ainda não compreendeu plenamente o que Hannah Arendt chamava de “banalidade do mal”: pequenas omissões burocráticas que, acumuladas, produzem consequências trágicas e sistêmicas.
O Código de Defesa do Consumidor e o princípio da informação adequada
O CDC brasileiro, promulgado em 1990, estabelece em seu artigo 6º, inciso III, o direito básico à “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço”. Bonito no papel. Tomista na intenção — pois reconhece que a liberdade de escolha pressupõe conhecimento da verdade. Mas profundamente insuficiente na execução.
O que significa “informação adequada” quando falamos de substâncias químicas cujos nomes científicos são impronunciáveis para 99% da população? Como garantir “clareza” quando empresas utilizam nomenclaturas técnicas que mascaram a toxicidade real de componentes? O parabeno escondido sob o nome “4-hidroxibenzoato de metila”, o formaldeído disfarçado como “quaternium-15”, os ftalatos ausentes dos rótulos por não serem considerados “ingredientes ativos”.
Aristóteles, no Livro V da Ética a Nicômaco, nos ensina que a justiça é proporcional — e que não há proporcionalidade quando uma das partes detém todo o conhecimento técnico e a outra permanece na penumbra da ignorância forçada. O consumidor brasileiro, juridicamente “vulnerável” segundo o próprio CDC, enfrenta uma vulnerabilidade agravada: a informacional.
As ausências normativas: o que a lei não diz
Diferentemente da União Europeia, que mantém o REACH (Registration, Evaluation, Authorisation and Restriction of Chemicals) — sistema que exige registro detalhado de mais de 30 mil substâncias químicas com dados sobre toxicidade, persistência ambiental e bioacumulação —, o Brasil não possui lista vinculante de substâncias proibidas ou restritas que seja abrangente e atualizada regularmente.
A ANVISA mantém listas setoriais (cosméticos, saneantes, alimentos), mas estas funcionam de modo fragmentado, reativo e, muitas vezes, desatualizado em relação ao estado da ciência toxicológica internacional. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, obrigação de as empresas realizarem testes independentes de segurança toxicológica antes de lançar produtos no mercado. O ônus da prova, perversamente, recai sobre o consumidor lesado — que precisará demonstrar, após o dano, o nexo causal entre exposição e enfermidade.
Como dizia Santo Tomás de Aquino, “a lei é uma ordenação da razão para o bem comum”. Mas que bem comum pode haver quando a própria lei se recusa a nomear os perigos que circulam livremente?
A cultura do sigilo corporativo e a captura regulatória
Há, subjacente a esta arquitetura jurídica deficiente, algo que transcende a técnica legislativa: uma cultura de sigilo corporativo protegida por interpretações elásticas do conceito de “segredo industrial”. Empresas alegam que a divulgação completa da composição química de seus produtos comprometeria a competitividade comercial. E nossos tribunais, frequentemente, concordam.
Mas será legítimo invocar segredo industrial quando está em jogo a saúde de milhões? Seria aceitável que uma indústria farmacêutica ocultasse os componentes de um medicamento sob o argumento de proteção comercial? Por que, então, toleramos que fabricantes de produtos de limpeza, cosméticos, pesticidas domésticos e utensílios plásticos operem sob esta mesma lógica opaca?
Permito-me aqui citar Guimarães Rosa, que em “Grande Sertão: Veredas” nos adverte: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Coragem, sim — mas também a verdade acessível. E a verdade sobre o que ingerimos, inalamos e absorvemos pela pele não deveria ser privilégio de especialistas.
Propostas para uma transparência efetiva
Não sou ingênuo. Sei que transformações legislativas profundas enfrentam resistências poderosas. Mas algumas medidas me parecem não apenas desejáveis, como urgentes:
Primeiro, a criação de um registro nacional unificado de substâncias químicas de uso comercial, nos moldes do REACH europeu, com dados públicos sobre toxicidade, carcinogenicidade e disrupção endócrina.
Segundo, a obrigatoriedade de rotulagem completa, com nomes comuns (não apenas nomenclatura IUPAC), acompanhada de sistema de alerta visual para substâncias reconhecidamente problemáticas — algo análogo aos pictogramas de perigo que já existem, mas aplicado ao consumo cotidiano.
Terceiro, inversão do ônus da prova em ações coletivas envolvendo danos por exposição química: caberia à empresa demonstrar a segurança, não ao consumidor provar o dano.
Quarto, fortalecimento da ANVISA e dos PROCONs com equipes técnicas especializadas em toxicologia e química analítica, capacitadas para fiscalização efetiva.
Utópico? Talvez. Mas como nos lembra Peter Drucker, “a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”. E criar um futuro de transparência exige primeiro reconhecer, com clareza cartesiana, a opacidade presente.
Conclusão: entre a prudência e a coragem
O direito do consumidor brasileiro nasceu sob o signo da proteção do vulnerável. Mas vulnerabilidade informacional diante de químicos tóxicos invisíveis representa uma das formas mais insidiosas de violação da dignidade humana — porque ataca não apenas o corpo, mas a própria capacidade de autodeterminação.
Santo Agostinho, em suas Confissões, escreveu algo que me parece especialmente apropriado: “A verdade não é propriedade de ninguém, mas pertence a todos que a procuram sinceramente”. A composição química dos produtos que adentraram nossos lares, nossos corpos, o sangue de nossos filhos — esta verdade não deveria ser propriedade corporativa. Deveria ser direito público.
Enquanto nosso ordenamento jurídico não der este salto qualitativo, continuaremos dependendo da vigilância individual, da pesquisa autônoma, da desconfiança sistemática. Continuaremos sendo, juridicamente, consumidores protegidos. Mas, na prática, cobaias involuntárias de um experimento químico sem controle e sem fim.
E porque a transformação sistêmica leva tempo, enquanto a exposição tóxica acontece hoje, preparei um guia prático e abrangente sobre Como se proteger dos químicos tóxicos no cotidiano, com estratégias concretas que você pode implementar imediatamente na sua rotina e na de sua família.
Aviso: Este conteúdo reflete os estudos de Juvenil Alves nas áreas de filosofia, teologia, humanidades, literatura, psicanálise, direito e desenvolvimento humano.
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