Conheci Machado de Assis de perto, em 1975, em uma aula de Filosofia no Seminário Santo Antônio de Juiz de Fora. Meu professor, Simões, tinha o hábito de enaltecer a genialidade do autor, e nunca se cansava de repetir que o conto Missa do Galo revelava as contradições do ser humano como poucos. No entanto, foi em outro momento, enquanto discutíamos o conto O Natal, que ele lançou uma provocação: “Será que o ser humano mudou ou apenas mudou o Natal?” Essas reflexões ficaram gravadas em minha memória e, desde então, Machado tem sido uma companhia constante em minhas leituras e pensamentos.
Recentemente, um artigo de David Lehman na New Yorker reacendeu em mim o interesse pelo autor. Lehman, com sua sensibilidade crítica, destacou Machado como um dos grandes nomes da literatura mundial, e sua homenagem trouxe à tona uma pergunta inquietante: por que o maior escritor brasileiro, em um século marcado pelo clamor abolicionista, escolheu o silêncio frente à escravidão? Essa é uma questão que transcende a análise literária e nos leva a refletir sobre as escolhas de um gênio em meio às pressões sociais e políticas de seu tempo.
O século XIX foi especialmente rico para a literatura brasileira. Ele produziu 36 grandes escritores, dos quais 22 tiveram maior destaque, com contribuições que moldaram a identidade cultural do país. Entre eles, destacam-se figuras como José do Patrocínio, Castro Alves e Luís Gama, cujas vidas e obras estiveram profundamente alinhadas ao movimento abolicionista. Curiosamente, todos os afrodescendentes dessa geração, à exceção de Machado de Assis, engajaram-se na luta pela abolição. Não apenas eles: alguns escritores brancos, como Castro Alves, também se posicionaram contra a escravidão, demonstrando que a cor da pele não era necessariamente determinante, mas sim as escolhas individuais.
Este texto, portanto, parte uma lembrança pessoal para explorar um contexto histórico mais amplo. Ele busca compreender como Machado, mulato em uma sociedade escravista e profundamente desigual, construiu sua genialidade literária ao mesmo tempo em que optou por uma neutralidade estratégica em relação à sua obra, mas uma análise de suas escolhas e de como estas o colocam em contraste com outros intelectuais de seu tempo. Afinal, o que significa permanecer sutil em um momento em que outros, em condições igualmente adversas, levantavam suas vozes?
Panorama dos Escritores do Século XIX
O século XIX foi um período de intensas transformações no Brasil. A independência, consolidada em 1822, deu início a um movimento de construção da identidade nacional. A literatura se tornou um veículo poderoso para explorar as contradições sociais, os desafios da modernização e as tensões políticas, como a luta pela abolição da escravatura. Esse contexto produziu uma geração de escritores que, de diferentes maneiras, refletiram ou ignoraram os dilemas de seu tempo.
Enquanto alguns autores, com José do Patrocínio e Castro Alves, dedicaram suas vidas e obras à luta pela emancipação dos escravizados, outros como José Alencar, optaram por manter uma posição conservadora. Entre esses extremos, figuras como Machado de Assis adotaram um caminho intermediário, abordando indiretamente as contradições do sistema escravista em suas obras.
Autores Abolicionistas Direitos
- José do Patrocínio
Conhecido como “O Tigre da Abolição”, José do Patrocínio foi um dos maiores líderes do movimento abolicionista. Jornalista e orador, usou a imprensa para denunciar os horrores da escravidão e pressionar por mudanças. Sua militância incluiu campanhas públicas, organização de fugas de escravizados e articulação política. - Castro Alves
O “poeta dos escravos” transformou a poesia em arma contra a escravidão. Obras como O Navio Negreiro e Espumas Flutuantes não apenas emocionaram, mas mobilizaram multidões. Seu legado é o de um artista que usou a palavra para lutar pela liberdade. - Luís Gama
Escravizado até os 10 anos, Luís Gama tornou-se advogado e libertador de centenas de escravizados. Suas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino combinam crítica social e humor mordaz para expor o racismo e a hipocrisia da época. - Maria Firmina dos Reis
Pioneira da literatura abolicionista, Maria Firmina escreveu Úrsula, uma obra que dá voz aos escravizados, denunciando a opressão e a brutalidade do sistema.
Autores com Contribuições Literárias Indiretas
- Aluísio Azevedo
Em O Mundo e O Cortiço, Aluísio explorou as consequências do racismo e das desigualdades sociais. Embora não fosse militante, sua obra expôs as hipocrisias do Brasil escravista e suas heranças. - Machado de Assis
Em contos como Pai contra Mãe e trechos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado crítica de forma sútil a sociedade escravista. Contudo, essa abordagem indireta contrasta com o tom militante de outros contemporâneos. - Joaquim Manuel de Macedo
Em As Vítimas Algozes, Macedo apresenta uma narrativa que explora as implicações morais da escravidão. Apesar disso, ele não foi um participante ativo do movimento abolicionista.
Autores Omissos Ou Contrários à Abolição
- José de Alencar
Advogado e político, Alencar era defensor de uma abolição gradual. Em obras como O Tronco do Ipê, ele romantizou as relações entre senhores e escravizados, perpetuando a visão conservadora de sua época. - Visconde de Taunay e Olavo Bilac
Embora fossem escritores importantes, suas obras focaram em temas regionais e poéticos, distantes da questão abolicionista.
Machado de Assis: gênio e a omissão
Machado de Assis é uma figura singular. Nascido em 1839, no Rio de Janeiro, de origens humildes e mulato em uma sociedade escravocrata, ele ascendeu por meio do talento e da inteligência. Casou-se com Carolina, uma mulher branca de elite, e fundou a Academia Brasileira de Letras. Seu cargo público e sua dependência dos sistema monárquico podem ter contribuído para sua proposta discreta diante do movimento abolicionista.
Comparado a José do Patrocínio, também de origem negra, Machado escolheu um caminho mais seguro. Enquanto Patrocínio arriscava tudo, Machado explorava as contradições do sistema escravista em sua literatura, sem, no entanto, confrontá-lo diretamente. Sua escolha pode ser lida como prudência, mas também como omissão em um momento de efervescência.
O Absenteísmo e seu Impacto
Machado de Assis permanece como o maior escritor brasileiro, mas sua postura frente à escravidão é uma bacana lacuna que não pode ser ignorada. Diferentemente de figuras como José do Patrocínio ou Castro Alves, que arriscaram suas carreiras e vidas pela causa, Machado optou por uma neutralidade estratégica. Sua literatura, sofisticada e atemporal, registra as contradições de sua época, mas carece do apelo direto que caracteriza as grandes vozes abolicionistas.
Reconhecer essas diferenças não diminui sua genialidade, mas enriquece nosso entendimento sobre as escolhas de intelectuais em tempos de mudança. Ao lembrar de Machado, como fez David Lehman, somos desafiados a refletir não apenas sobre sua obra, mas também sobre seu silêncio. Esse exercício crítico ilumina as complexidades do século XIX e nos permite valorizar ainda mais aqueles que enfrentam o sistema, mesmo em condições adversas.
Para mim, que carrego minha própria história de desafios e escolhas, há algo profundamente confortante na frase de Machado: “Cair das nuvens é melhor do que do terceiro andar” esse lembrete de que é possível resistir, mesmo em meio à queda, sintetiza a humanidade que permeia sua obra. Ele nos ensina que, embora as escolhas em sempre sejam heroicas, a vida pode ser vista como uma narrativa de sobrevivência, resignação e, talvez, ironia. E, em sua genialidade, Machado continua a nos inspirar a compreender, questionar e aceitar as imperfeições humanas..
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