Quando o empate deveria significar dúvida razoável, por que o fisco sempre vence? Essa pergunta ecoa nos corredores do contencioso tributário administrativo desde que o voto de qualidade retornou ao CARF em 2023. O que deveria ser um mecanismo de desempate transformou-se em símbolo de uma discussão maior: até onde vai a prerrogativa estatal de arrecadar quando a dúvida é legítima?
O Pêndulo da História
Tenho acompanhado o vai e vem desse instituto por décadas. Em 2020, celebramos sua extinção pela Lei 13.988, que estabeleceu o princípio do in dubio pro contribuinte – afinal, se há empate, há dúvida razoável sobre a exigibilidade do tributo. Foi uma conquista civilizatória.
Três anos depois, a Lei 14.689/2023 trouxe o voto de qualidade de volta. A justificativa oficial mencionou a necessidade de aumentar a arrecadação e evitar “perdas fiscais”. O governo projetou arrecadar impressionantes 54,7 bilhões de reais em 2024 com essa medida.
A realidade, porém, foi outra. Os números oficiais mostram que a arrecadação efetiva ficou em apenas 307,8 milhões – menos de 1% do previsto. O Tribunal de Contas da União apontou superestimativa grave nas projeções, e a própria Receita Federal reconheceu que a metodologia de cálculo “não se mostrou crível”.
A Natureza do Problema
Vale observar que o voto de qualidade não é apenas uma questão técnica ou processual. Ele revela algo mais profundo sobre como encaramos a relação entre Estado e contribuinte. No CARF, órgão paritário por natureza, o presidente da turma – sempre um representante do fisco – detém o voto decisivo em caso de empate.
Na prática, isso significa que discussões tributárias legítimas, onde metade dos julgadores entende pela procedência da defesa do contribuinte, são decididas sistematicamente a favor da Fazenda. O empate deixa de ser empate. A dúvida razoável desaparece por decreto.
Como advogado que dedicou quatro décadas ao direito tributário, vejo com preocupação esse desequilíbrio. Não se trata de defender sonegação ou criar “brechas” para inadimplência. Trata-se de reconhecer que, quando há dúvida legítima sobre a exigibilidade de um tributo – expressa no empate de votos qualificados -, a prudência jurídica deveria favorecer o cidadão, não o Estado.
O Que Isso Significa Para Sua Empresa
Empresas que levam seus casos ao CARF precisam compreender essa nova realidade. Quando seu processo caminha para um possível empate, saiba que o resultado já está definido. Essa consciência deve informar suas decisões estratégicas desde o início.
Fique de olho em alguns aspectos importantes: primeiro, a Lei 14.689/2023 estabelece que multas e representações fiscais para fins penais serão canceladas quando o julgamento for decidido por voto de qualidade. É uma compensação parcial, mas não elimina o tributo principal corrigido pela Selic.
Segundo, considere cuidadosamente o custo-benefício de prosseguir no contencioso administrativo quando o empate é provável. Às vezes, buscar alternativas como transação tributária ou acordo pode ser mais vantajoso do que travar uma batalha cujo desfecho já conhecemos.
Terceiro, a dispensa de garantia introduzida pela Portaria PGFN 95/2025 para casos decididos por voto de qualidade pode aliviar o fluxo de caixa de empresas que precisam discutir judicialmente esses débitos. É uma pequena luz em meio à controvérsia.
A Questão Maior
Há algo de profundamente problemático quando a arrecadação se torna fim em si mesma, descolada de qualquer discussão sobre justiça tributária. O fracasso retumbante das projeções de receita com o voto de qualidade – apenas 0,5% do esperado – não é mero erro técnico. É sintoma de uma compreensão equivocada sobre o papel do contencioso administrativo.
O CARF não existe para arrecadar. Existe para julgar. Quando essa distinção se perde, quando o órgão julgador é visto como instrumento de política fiscal, todos perdemos – contribuintes e Estado.
Como dizia Rui Barbosa, “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário” – e eu acrescentaria: ou a ditadura de qualquer poder que deveria julgar com imparcialidade, mas julga com viés. No caso do CARF, estamos diante de um tribunal administrativo que, por imposição legal, não pode julgar com verdadeira imparcialidade nos casos de empate.
Navegando em Águas Turvas
O voto de qualidade seguirá gerando debates intensos. Há quem defenda sua constitucionalidade, há quem a questione veementemente. O que não podemos é fingir que essa polêmica não existe ou que não afeta diretamente a vida das empresas brasileiras.
Minha experiência me ensinou que, em matéria tributária, a prudência não é covardia – é sabedoria. Conhecer as regras do jogo, por mais controversas que sejam, permite tomar decisões informadas. E decisões informadas, em contencioso tributário, podem significar a diferença entre a sustentabilidade e o colapso financeiro de uma operação.
Se sua empresa enfrenta litígios tributários no CARF, busque orientação especializada que considere não apenas os aspectos jurídicos, mas também o contexto político e econômico dessas disputas. A batalha tributária se vence tanto nos autos quanto na compreensão estratégica do cenário onde ela se desenrola.
Para entender como o voto de qualidade tem impactado casos concretos e criado precedentes preocupantes, veja minha análise sobre CARF Mantém Tributação de Lucros no Exterior: O Voto de Qualidade e a Insegurança Jurídica, onde examino um julgamento emblemático que ilustra perfeitamente as tensões que discutimos aqui.
Aviso: Este artigo tem caráter informativo e não substitui consultoria jurídica específica para seu caso.
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Com quatro décadas de experiência em contencioso tributário, posso ajudá-lo a avaliar estratégias e alternativas para proteger seu patrimônio diante das complexidades do sistema administrativo fiscal brasileiro. Entre em contato para uma análise personalizada da sua situação.
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